sexta-feira, 11 de abril de 2014

Paradoxo de Epicuro revisitado (ou incompatibilidade entre o modelo teísta abraâmico-cristão e a existência do mal)



Gostaria de esclarecer previamente que este texto é uma crítica específica ao modelo teísta abraâmico-cristão, não contra o teísmo de forma geral, contra o deísmo, panteísmo ou outras linhas teológicas. Usarei uma linguagem simplificada para facilitar o entendimento do conteúdo exposto.

Parto dos critérios que fundamentam a crença teísta abraâmica-cristã, seguindo o raciocínio proposto por Epicuro, que foi um filósofo Grego nascido no ano 341 a.c, o qual, confrontado com a absurda incoerência entre o teísmo e a existência do mal, desenvolveu o seguinte trilema, que ficou conhecido como Paradoxo de Epicuro. O trilema propõe que deus:

-Enquanto onisciente e onipotente, tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele. Mas não o faz. Então não é onibenevolente.
(Deus sabe que o mal existe, tem poder para erradicá-lo, mas não o faz. Então não é bom.)

- Enquanto onipotente e onibenevolente, então tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe e onde o mal está. Então ele não é onisciente.
(Deus tem poder para erradicar o mal, tem vontade de fazê-lo porque é bom, mas não o faz porque não tem conhecimento do mal. Então ele não sabe tudo, não é onisciente)

- Enquanto onisciente e onibenevolente, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas não o faz, pois não é capaz. Então ele não é onipotente.
(Deus sabe que o mal existe e quer erradicá-lo, pois é bom. Porém, não o faz pois não é capaz. Então não pode tudo; não é onipotente).

Leia o trilema acima quantas vezes forem necessárias. Inevitavelmente você  perceberá que o modelo teísta mais convencional é incompatível com a existência do mal ou de uma entidade que o represente, como o demônio. Vamos então rever as variáveis abordadas, que são confrontadas com a existência do mal pelo paradoxo, de maneira mais organizada:

-Deus é onibenevolente (absolutamente bondoso)
-Deus é onipotente (pode tudo)
-Deus é onisciente  (sabe tudo)
-Deus é onipresente  (está em todo lugar)
-O mal existe ( e segundo as religiões abraâmicas, também existe o demônio, que é a entidade personificadora de todo o mal, assim como o inferno, o qual segundo a mesma linha teológica, é o lugar para onde as pessoas más vão para sofrer por toda a eternidade após a morte do corpo físico)

Portanto, partindo da certeza absoluta de que o mal existe, ou deus não o erradica por que não pode, ou por que não tem conhecimento, ou porque não sabe onde ele está, ou simplesmente por que não quer.

O problema é que o mal existe, portanto é impossível que uma entidade divina que englobe todos estes critérios exista sem abrir mão de pelo menos um. No entanto, a raiz do problema é que, um deus nos moldes teístas, sem qualquer um destes critérios, simplesmente deixa de ser deus. Em outras palavras; Este modelo teológico, que também é parte fundamental do modelo teológico abraâmico-cristão é absolutamente impossível e inconsistente.

Este, meus caros, é o problema que até hoje incomoda todas as religiões de crença teísta. Literalmente, nenhum teólogo ou religioso ao longo da história da humanidade conseguiu oferecer uma solução coerente para o problema do mal.

A resposta teológica mais comum, embora medíocre, para tal problema, é a de que seres humanos nunca podem esperar entender o divino. No entanto, esta justificativa é no mínimo cômica dentro do contexto religioso, partindo do ponto no qual as religiões escrevem livros, seguem regras e normas rígidas, promovem ou já promoveram todos os tipos de atrocidades partindo justamente da justificativa de que tudo que fazem ou fizeram é a vontade de deus, ou seja, as religiões dependem da capacidade de entender deus para poder representá-lo com autoridade. Portanto, ao evocar a justificativa pífia de que seres humanos nunca podem esperar entender o divino como resposta ao problema do mal, elimina-se automaticamente toda a propriedade e autoridade religiosa de falar ou agir em nome de uma entidade da qual os próprios religiosos admitidamente dizem nunca poder esperar entender.

Bom, de qualquer forma, ainda restam observações importantes para fazer.

A definição primordial do significado de deus, dentro do contexto teísta, é a de que tal entidade seria o supremo criador, ou seja, o criador absoluto de tudo que já existiu, que existe e do que ainda existirá. Logo, é necessário, por motivo de clarificação, adicionar o seguinte critério aos demais:

- Deus criou tudo.

Pare, pense e repare que este critério fundamental eleva o problema, que até então ainda permanece insolúvel do ponto de vista teológico, para um outro patamar de complexidade, que é o seguinte:

- Se deus existe e criou tudo, também criou o mal, incluindo a entidade que o representa segundo o cristianismo, que é o demônio, juntamente com o inferno e todo o resto do pacote. Se deus, sendo onipotente, onisciente e onipresente, além de ter criado o mal (incluindo o demônio e o inferno), permite que o mal continue existindo, então é porque deus não é bom.

Agora não necessitamos mais do trilema de Epicuro, pois a questão se tornou um dilema:

-Se deus criou tudo, criou também o mal, incluindo o demônio e o inferno, e permite que eles continuem existindo embora tenha poder para erradicá-los. Então deus não é bom.
-Se não criou nem o mal, nem o demônio, nem o inferno, então deus não criou tudo. Se não criou tudo, então não é deus.

Logo, a ideia de um deus criador de tudo, onipotente, onisciente, onipresente e bondoso é absolutamente incompatível com a realidade da existência do mal. Para resumir, existem somente duas opções, neste caso:

- Ou deus existe mas é mau.
- Ou deus como proposto pelo modelo abraâmico-cristão não passa de uma construção fictícia, incoerente e incompatível com a realidade.

Portanto, cabem aos cristãos ou quaisquer outros adeptos de religiões abraâmicas, as seguintes opções:

a) Opção imoral - Continuar acreditando, obedecendo e seguindo um  suposto deus que contém todos os critérios abraâmicos, porém é mau. Um deus que não só criou o mal em si, o demônio e o inferno, mas que continua permitindo que eles existam e não os erradica simplesmente porque não quer.
b) Opção moderada - Adaptar sua crença a modelos teológicos que propõem a existência de uma entidade criadora neutra, ou seja, não intervencionista e não antropocêntrica, como o modelo deísta ou panteísta.
c) Opção honesta - Assumir o agnosticismo, ou seja, assumir a impossibilidade de se ter certeza sobre a existência de deus.

Infelizmente, a imensa maioria dos religiosos de fé abraâmica-cristã, ao ser confrontada com o problema exposto acima, decide optar por uma quarta opção, que é:

d) Opção cretina - Ignorar a lógica, a inteligência e a razão, que são justamente as qualidades que nos tornam mais capazes do que os outros animais, e continuar crendo em um modelo teológico que é no mínimo inconsistente, obviamente conflitante e absolutamente incoerente.

Para concluir, gostaria de citar Martinho Lutero, figura central no movimento da reforma protestante:

"A razão é uma puta, a maior inimiga da fé..."


A razão e a fé são incapazes de coexistir de maneira coerente e pacífica na mente do mesmo indivíduo. Enquanto a razão e a lógica expandem as fronteiras do conhecimento e da mente, a fé depende somente da negação da razão, da ignorância,  para existir. Evidentemente, este é o principal motivo pelo qual a fé e a religião sempre foram e ainda são as principais ferramentas de manutenção da ignorância e, consequentemente, de manipulação das massas para fins escusos.